Carta aberta do IABsp relata debate sobre a revisão do PDE

O evento realizado pelo IABsp contribuiu com o aprofundamento de questões trazidas pela proposta de revisão da Lei de Zoneamento


(Foto: Mayra Moraes)

O Instituto de Arquitetos do Brasil – Departamento São Paulo (IABsp) divulgou um resumo do debate realizado, na última semana, com o objetivo de esclarecer e discutir as propostas de revisão da Lei de Zoneamento (16.402/2016) contidas na Minuta de Projeto de Lei apresentada recentemente pela prefeitura de São Paulo, frente aos principais temas relacionados às dinâmicas urbanas e imobiliárias e à atividade dos profissionais dedicados ao planejamento e projeto do espaço urbano.

Leia o documento na íntegra:

Em 27 de fevereiro de 2018, o Departamento de São Paulo do Instituto de Arquitetos do Brasil promoveu um debate a respeito das modificações propostas pela Prefeitura de São Paulo ao Zoneamento da cidade. Realizado na mesma semana de duas audiências públicas públicas, o evento IABsp Debate: Revisão da Lei de Zoneamento de São Paulo foi uma oportunidade para discussão técnica e aprofundada a respeito das implicações da proposta em questão.

O Zoneamento, também denominado em São Paulo Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo, estabelece as regras para construção e utilização dos lotes no município, detalhando e especificando as diretrizes do Plano Diretor Estratégico da cidade. Aprovada em 2016, depois de um processo de 1 ano de discussão no Executivo e 10 meses na Câmara de Vereadores, a lei volta a ser objeto de revisão menos de dois anos depois da sua aprovação, através de uma minuta de projeto de lei apresentada pela Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento, em meados de Dezembro de 2017.

As propostas apresentadas pela Prefeitura compreendem:

– A liberação do gabarito fora dos eixos de transporte (limitado hoje a 28 metros);

– Descontos entre 30% e 50% na Outorga Onerosa do Direito de Construir,
O aumento ao subsídio à construção de vagas de garagens nos eixos de transporte (limitado hoje a 1 vaga não computável);

– A eliminação de uma série de dispositivos nos territórios de Operação Urbana (cota de solidariedade, quota ambiental, cota de garagem e cota parte máxima, gabarito e restrição de vagas não-computáveis);

– A diminuição de (em) 10% no percentual obrigatório de unidades para faixa 1 (destinada a famílias com renda familiar mensal de até R$ 2.172,00) em empreendimentos de Habitação de Interesse Social;

– O aumento no lote máximo de 20.000 para 40.000m2 para hospitais, estabelecimentos de ensino superior e universidades, shoppings centers e comércio com depósitos de grande porte;

– A incidência da Quota ambiental em terrenos com área superior a 1.000m2 (hoje, a quota incide em terrenos com mais de 500m2);

– Regulamentação do Retrofit.

Tratam-se de propostas bastante distintas, capazes de impactar desde as fontes de receita para investimento público em urbanização, até a morfologia urbana e, ainda, os padrões de mobilidade na cidade. Ao mesmo tempo, a iniciativa de promover essa revisão neste momento pode ser analisada sob diferentes óticas, que passam pelas dinâmicas econômicas na cidade, pelo jogo político entre grupos de interesse e o poder público, pela administração e orçamento público e pelo modelo de desenvolvimento urbano que adotamos para a cidade nos próximos anos. O debate realizado no IABsp teve como objetivo explorar algumas das facetas neste processo.

Foram convidados representantes de movimentos e organizações sociais e técnicos especializados na área. Sérgio Reze, da Cidade Viva, rede de associações de bairros voltada à qualidade de vida e sustentabilidade, questionou a justificativa da Prefeitura de que a revisão é necessária pois é preciso “reconhecer a cidade real”. Segundo Reze, a cidade real é aquela marcada por inúmeros problemas que necessitam ser considerados, como a presença de habitações informais, pela infraestrutura urbana insuficiente e desordenada, pela falta de áreas verdes e pela poluição ambiental. Sérgio Reze também questionou a pertinência de oferecer descontos na Outorga Onerosa num momento em que o setor imobiliário demonstra recuperação e crescimento, segundo dados do Secovi.

Carmen da Silva, da Frente de Luta por Moradia, relembrou a proposta de uma cidade mais justa e para todos, contida no Plano Diretor Estratégico da cidade, aprovado depois de um árduo processo de discussão. Carmen ressaltou a importância do Fundurb, fundo que recebe as receitas arrecadadas pela Outorga Onerosa do Direito de Construir, para a promoção de infraestrutura e moradia para todos. Por fim, reforçou que ao invés de o poder público propor a rediscussão dos pactos já firmados, cabe agora executá-los.

O Presidente da AsBEA, Edison Lopes, relatou experiências de aplicação da lei, e os desafios encontrados em diferentes situações. Na sua visão, existe a necessidade de ajustes no Zoneamento, relacionados às dificuldades de sua aplicação. Lopes reconhece os aspectos inovadores trazidos pelo PDE e ressaltou que os ajustes ao Zoneamento devem ser debatidos em processo tão amplo quanto foi a discussão da lei, ocorrida entre 2014 e 2016.

Especialista em políticas fundiárias para a América Latina e pesquisadora do Lincoln Institute of Land Policy, Claudia Acosta se aprofundou em dois pontos contidos na minuta de revisão: os descontos na Outorga Onerosa do Direito de Construir e a liberação dos limites de gabarito nos miolos de bairro. Acosta ressaltou que São Paulo é expoente da aplicação de instrumentos urbanísticos como a Outorga na América Latina. Avaliou como um equívoco a comparação do preço da Outorga com o Custo Unitário Básico (CUB) da construção, conforme apresentado em Justificativa técnica pela Prefeitura, uma vez que o CUB diz respeito a insumos da construção (mão-de-obra, materiais, equipamentos) e a Outorga Onerosa diz respeito à terra urbana e ao chamado “solo criado”, isto é, a construção além do coeficiente básico permitido. A especialista ressaltou que a Outorga, embora paga pelo construtor, incide sobre o proprietário do terreno, pressionando o preço da terra para baixo. Ela não altera, portanto, os custos de construção, tampouco o preço final dos imóveis. Afirmou ainda que o mercado imobiliário tem comportamento cíclico, e portanto é normal que a curva de consumo da Outorga tenha tido altos e baixos.

Claudia Acosta analisou também a proposta de flexibilização dos gabaritos em “miolos de bairro”, motivada pelos custos mais baixos da construção em edifícios mais altos e pela suposta baixa disponibilidade de terras nos eixos (6% das áreas passíveis de transformação). Entretanto, Acosta ressalta que não há escassez de terras nos eixos, uma vez que 6% é mais do que o mercado conseguiria consumir durante a vigência da lei. Trata-se, assim, de uma pressão do mercado imobiliário para ter menos restrições com respeito a onde construir. Este é um comportamento normal do mercado, mas que deve ser ponderado, uma vez que as restrições colocadas pelo setor público podem trazer ganhos à coletividade.

Fernando de Mello Franco, diretor do Instituto de Urbanismo e Estudos para a Metrópole (Urbem), foi Secretário Municipal de Desenvolvimento Urbano de 2013 a 2016. Franco questionou o processo conduzido pela Prefeitura neste momento, diferenciando-o do que seriam procedimentos de ajustes da aplicação da lei – estes poderiam ser feitos por leis específicas, decretos e portarias. Segundo ele, este projeto de lei de revisão do Zoneamento vai muito além de ajustes quanto à aplicabilidade da política. Franco ressalta que é necessário ter um abordar criticamente esse processo, uma vez que os conteúdos apresentados interferem em princípios pactuados no Plano Diretor.

Quanto aos descontos na Outorga Onerosa, Franco considera falha a justificativa de que o desconto implicaria uma redução do custo final para o consumidor, uma vez que durante o boom imobiliário recente, os preços dos imóveis foram majorados conforme a demanda, distanciando-se dos custos envolvidos na incorporação e construção. Além disso, ressaltou o papel da Outorga na captura da mais valia fundiária, isto é, o retorno para os cofres públicos da valorização da terra urbana ocorrida a partir de investimentos públicos.

Franco enfatizou que o Plano Diretor inverte o paradigma de desenvolvimento urbano existente até então, buscando o adensamento no entorno imediato dos eixos de transporte público. Ao proporcionar descontos generalizados de outorga, a Prefeitura perde a capacidade de induzir o desenvolvimento ao longo dos eixos. Por fim, Franco citou dados da atividade imobiliária após aprovação do PDE que revelam que a produção imobiliária vem crescendo em São Paulo, em detrimento dos demais municípios da Região Metropolitana. Além disso, ressaltou que a participação de imóveis de habitação de interesse social cresceu consideravelmente, e a produção de imóveis sem vagas de garagens atingiu uma proporção sem precedentes, ainda que possam existir distorções devido à crise.

Em síntese, o IABsp Debate revelou a complexidade do tema e a necessidade de um processo amplo de discussão, que inclua também os setores técnicos. O evento veio a contribuir com o aprofundamento das questões trazidas pela proposta de revisão do Zoneamento, embora não tenha sido possível discuti-las diretamente com a Prefeitura, que declinou o convite para o evento. A sessão final do evento foi aberta a colocações por participantes na plateia. Foram então questionados os procedimentos conduzidos pela Prefeitura neste processo e apontada a necessidade de um debate ampliado, com análises temáticas e que aborde os múltiplos impactos decorrentes da proposta em questão. Cerca de 150 pessoas participaram presencialmente do debate, que foi transmitido ao vivo e contou com mais de 5.000 acessos durante o evento.

O IABsp, junto a mais de 150 entidades da sociedade civil, questiona a proposta da Prefeitura de São Paulo quanto à revisão do Zoneamento, particularmente depois de um processo participativo rico, amplo e plural que marcou a formulação da lei. Em prol do interesse público, o Instituto sugere a suspensão do processo de revisão até que sejam retirados os pontos que interferem no Plano Diretor, e que sejam apresentados e debatidos os estudos técnicos que demonstram efetivamente as motivações para a revisão. O IABsp acredita na importância da realização de um processo participativo transparente, amplo, com audiências e oficinas locais, reuniões com a sociedade civil e audiências temáticas, coerentes com a importância que de fato possui o Zoneamento para o futuro da cidade de São Paulo.

Marcela Ferreira e Luciana Royer, Diretoria IABsp