Entrevista: Rodrigo e Ruy Ohtake

Na entrevista a seguir, pai e filho, arquitetos, falam sobre o trabalho em conjunto no escritório de Ruy e sobre as coincidências e discordâncias que marcam as suas visões particulares sobre a arquitetura.

Publicamos nesta edição da revista PROJETO dois projetos da família Ohtake: o Centro Cultural de Jacareí, de Ruy Ohtake, e o centro comunitário/sede do Instituto Alana, de Rodrigo Ohtake. Ambos localizados em São Paulo – no Vale do Paraíba e na zona leste da capital, respectivamente. Rodrigo é filho de Ruy, neto, portanto, de Tomie Ohtake (1913-2015) e sobrinho do também arquiteto Ricardo Ohtake, o que o coloca no olho do furação de uma família de artistas e arquitetos, na qual a questão da herança profissional pode ser uma dádiva ou um fardo. Ou, deixando de lado os extremos, algo no meio desse caminho excepcional. Na entrevista a seguir, pai e filho falam sobre a atuação em conjunto no escritório de Ruy, onde Rodrigo foi trabalhar recém-formado, em 2008, pela FAU/USP. Como os demais funcionários, registra Ruy, o filho ingressou como estagiário e, aos poucos, está construindo carreira no cotidiano corporativo, paralelamente aos projetos que desenvolve independentemente, como o Alana, fora do horário comercial. Por seu lado, Rodrigo é explícito em declarar a admiração que sente pelo trabalho do pai e pelo didatismo de Ruy em incentivar a criatividade dos jovens – forçados a se expressarem com esboços manuais no escritório – e a sua familiarização tanto com o canteiro quanto com o pós-obra.

Como pano de fundo desta história privada ficam, enfim, os relatos sobre contextos diversos de formação – cerca de 50 anos separam as conclusões de curso de ambos, na mesma escola – e sobre ideais arquitetônicos transmitidos entre gerações. Seguir a intuição, projetar para campo alargado de atores que interagem no processo arquitetônico mas, ainda assim, firmar sua posição criativa com obra capaz de ressignificar o entorno são visões compartilhadas pelos Ohtakes na entrevista a seguir.

 

Quando começaram a trabalhar juntos?

Rodrigo Ohtake Temporariamente em 2004, enquanto a FAU estava em greve. Meu pai me colocou para trabalhar no projeto de Heliópolis e eu aprendi que a discussão com a comunidade é uma forma de enriquecer o projeto. Voltei em 2008, então já próximo de concluir a faculdade. Como todos os outros, comecei como estagiário. Já se passaram sete anos, e eu tenho muito o que aprender ainda.
Ruy Ohtake Esse programa de estágio que eu implantei aqui no escritório foi para forçar os jovens a desenharem sem o computador. Eu acho que a mão é ainda o melhor agente daquilo que o arquiteto quer criar. E para fazer esse desenho é preciso ter o mínimo de traquejo. Aproveito o fato de que os estudantes pedem estágio para terem contato comigo e os coloco para desenhar e, depois, para visitar obra. O Rodrigo conviveu com o projeto de Heliópolis no momento em que havia uma interessante discussão com a comunidade sobre a cor que escolheriam para predominar nas fachadas das construções.

 

Vocês se formaram em épocas muito diferentes. O que consideram ter sido o principal ensinamento da faculdade?

Ruy Eu me formei numa das fases culturais mais importantes do Brasil, quando a arquitetura brasileira, principalmente com Oscar Niemeyer, atingiu níveis universais e se construiu Brasília. Um dos pontos culminantes da arquitetura brasileira. Mas logo depois veio o golpe militar, que, além da truculência física, foi prejudicial para a nossa profissão porque desenvolveu projetos infraestruturais em escritórios enormes, com 3 mil ou 4 mil profissionais, onde a criatividade não tinha nenhuma importância. Isso estagnou a arquitetura brasileira por uns 20 anos, a começar pela rejeição dos militares ao projeto de Oscar para o aeroporto de Brasília.

 

Mas naquele momento você já estava formado.

Ruy Sim, os militares vieram depois. Acho que o principal ensinamento da faculdade foi o impulso à criatividade, porque o arquiteto precisa de liberdade para criar coisas. Participei de uma das turmas mais privilegiadas da FAU, com Artigas readmitido na escola quando eu estava no segundo ano, reformulando o ensino e nos instigando a olhar a arquitetura também pelo seu viés social. Ele influenciou toda a nossa geração da FAU e nos deu garra para desempenharmos a profissão.

 

Rodrigo, você reconhece algo disso que seu pai está relatando na sua experiência de estudante?

Rodrigo O fato de meu pai ser um grande arquiteto foi algo muito importante para a minha formação, que começou, então, mesmo antes de eu entrar na FAU. Primeiro, ele me fez prestar atenção a detalhes, proporções, espaços e cores da arquitetura nas viagens que começamos a fazer sozinhos, quando eu tinha 12 ou 13 anos.
Ruy Muitas vezes eram viagens para lugares em que eu daria palestras. Sempre que possível, eu levava o Rodrigo comigo.
Rodrigo Meu pai é muito didático, falava comigo sobre a função da arquitetura naquelas sociedades todas, o contexto atual de países ricos e pobres. Depois, aos 18 anos, eu passei na FAU. Lá, foi muito importante para mim o contato com as histórias, da arte e da arquitetura, e com os fundamentos sociais. Agnaldo Farias, José Tavares Lira, Angelo Bucci foram excelentes professores, mas não consigo pensar apenas na FAU quando se trata da minha formação. O meu grande professor de projeto foi, e tem sido, o meu pai. O que eu aprendo com ele é infinito.
Ruy Ou seja, a arquitetura não começa às 9 horas e termina às 18. É full time. O desenho pode até durar determinadas horas, mas o pensamento e o olhar estão incorporados na gente.

 

Destacariam alguma viagem em especial?

Rodrigo A da Bauhaus foi superimpactante, tanto pela história do prédio quanto pelo fato de meu pai ter sido convidado para dar a principal palestra, no prédio do Gropius!
Ruy Emendamos com a visita à feira de Hannover, que estava acontecendo na mesma época.
Rodrigo Outra especial foi a que fizemos, num carnaval, para a Amazônia. Meu pai alugou um barco e levou toda a família para navegar pelo rio Negro; para quem conhece a exuberância da floresta através de fotos, a experiência é outra.
Ruy Só quando se entra na mata é que se percebe a penetração dos raios solares.
Rodrigo O mesmo vale para a experiência com culturas distintas.

 

Continuam com esta prática?

Ruy Agora menos. Fui ficando preguiçoso.
Rodrigo Também no cotidiano podemos manter o olhar permanentemente atento. Às vezes, quando tem algo difícil em um projeto, meu pai me diz: “Vai dar uma volta na cidade, que tem algo que pode te ajudar”.
Ruy É também o olhar sobre o que está atrás do visível.

 

Para algum de vocês há o peso da herança profissional?

Ruy Para mim, não. Achei ótimo quando o Rodrigo decidiu estudar arquitetura, nunca foi algo imposto.
Rodrigo Talvez o meu trote na FAU tenha sido um pouco maior do que o dos outros estudantes e, em certos momentos, eu tenha percebido alguma pressão dos colegas e professores, mas nunca dei muita importância para isso. O fundamental para mim é a admiração e o respeito que eu tenho pela arquitetura do meu pai. Claro que há uma pressão interna, minha, mas, em vez de ser um peso, procuro encará-la no melhor sentido da palavra desafio. Nunca me senti competindo com o meu pai.

 

Encaram, então, como um processo natural de transmissão de certos preceitos?

Ruy Costumo dizer que trabalho com três verdades: a do anteprojeto, a do desenho que vai para a obra e, por fim, a da obra concluída. Sempre que possível, visito obras de cinco, dez anos atrás, tanto porque acredito que arquitetura é obra construída quanto porque, no desenho, ainda não estão estabelecidas as relações com o entorno. É importante conversar com os usuários e ver como o contexto se apropriou da arquitetura. O bom projeto não é intocável e, por outro lado, não resulta tal e qual do entorno. Imagine se o nosso amigo Frank Gehry fosse levar em conta Bilbao quando foi conceber o museu [Guggenheim]. Acho que é bom ver o entorno para projetar, mas não precisa ter com ele uma relação servil. A história é importante para a nossa formação, mas temos que pensar para a frente também, em vez de só olhar para trás para fazermos a proposta. O quanto para frente? Vinte, cinquenta anos? Não sei dizer. Nem mesmo se a obra vai durar isso, se não for interessante. Os modismos são logo ultrapassados. A obra tem que envelhecer bem, não apenas em termos construtivos, mas também de espacialidade. As obras de Oscar para Brasília deram para o plano diretor uma força plástica fundamental.
Rodrigo É sempre um grande aprendizado ver como não se repetem os trabalhos do meu pai e uma verdadeira aula acompanhá‑lo nas apresentações dos projetos.

 

Pensar o futuro, em termos estéticos, pode gerar algum incômodo na crítica.

Ruy Esse meu radicalismo, de fato, incomoda um pouco.

 

Alana é a sua primeira obra mais complexa. O que tem da leitura do entorno nesse projeto?

Rodrigo Por estar localizada dentro de uma comunidade carente, o entorno daquela obra é uma questão delicada, mais em termos conceituais do que formais propriamente ditos. Ou seja, se o entorno sente falta de espaços de convivência, abertos, procurei oferecê-los na obra. Em termos materiais, aprendi com meu pai a utilizar elementos que sejam familiares aos usuários, mas de maneira digna.
Ruy A palavra dignidade, a que o Rodrigo se refere, é muito importante em qualquer projeto, principalmente quando se trata de comunidades carentes. O que falta em qualquer periferia de qualquer grande cidade é, em primeiro lugar, dignidade na moradia, na urbanização, na infraestrutura. Acho que tanto mais se obtém a dignidade quanto mais se discute o projeto com a comunidade em torno de algo que se visualize como um futuro desejável.

 

Influência de ser filho de uma grande artista plástica?

Ruy Sinto alguma dificuldade em ver dessa forma. As influências são tão emaranhadas! Claro que um pouco da minha arquitetura vem da minha mãe, mas não sei dizer quanto. Por exemplo, a questão da vanguarda, que tem intrínseca a palavra consenso. Consenso é bom? Politicamente é importante, mas em termos artísticos não tem a menor relevância. Pensando bem, a vanguarda serve para romper consensos e criar algo novo, inédito. Depois é que entra o consenso. Vale a intuição, para o artista e para o arquiteto. E procurar desenvolvê-la ao máximo, isso sim, veio muito da minha mãe. A Tomie foi uma pintora com intuição impressionante.
Rodrigo Por vezes a intuição dura uma fração de segundo, mas ainda assim tem que ser respeitada e seguida porque não é algo racional. Meu pai dorme com um bloco de desenho ao seu lado.
Ruy As escolas ensinam mais a racionalizar do que a sentir. Acho que as matérias complementares, técnicas, tinham que ser dadas por arquitetos para os estudantes de arquitetura. Frank Lloyd Wright fez um hotel em Tóquio sobre um terreno que era um grande brejo, apoiado sobre uma laje radier. Isso foi em 1910 e, quando veio o terremoto, alguns anos depois, adivinha qual foi a obra de grande porte que ficou intacta? A dele. Acho que muito do que chamamos de técnica evoluiu por demanda dos arquitetos.

 

O arquiteto é um prestador de serviço, depende das muitas variáveis de uma encomenda. Ainda assim, acreditam que é possível traçar um plano do profissional que se pretende ser?

Ruy Depois de alguns projetos você começa a ter uma linha, mais fluida algumas vezes, menos em outras. Uma linha em curva, eu diria. Se você olhar as dez primeiras obras de Gehry na Califórnia, não diria que ele chegaria a Bilbao. Embora, conceitualmente, ele sempre estivesse interessado em responder ao uso de um material qualquer.
Rodrigo Não estou muito preocupado com a arquitetura que estarei fazendo daqui a 20 ou 30 anos. O que importa é que ela tenha evoluído em relação ao presente, ainda que eu não acredite ser possível ao arquiteto ter o controle desse processo. O importante é evoluir, não sei bem para onde.

 

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