(Foto: Ana Ottoni)

Entrevista – Héctor Vigliecca

Sumidade no Brasil em projetos de desenvolvimento e regeneração urbana e de arquiteturas que qualificam trechos de cidades, o uruguaio - recentemente naturalizado brasileiro - Héctor Vigliecca foi protagonista na última década de projetos de grande escala e visibilidade. Como os de equipamentos esportivos da Copa do Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016, assim como de estudos para grandes intervenções urbanísticas. Crise e prospecção de trabalho são assuntos da entrevista a seguir, que, embora o tom geral pessimista, relata histórias de profissionalismo e da boa qualidade da arquitetura e urbanismo

Na sala de reuniões do escritório da Rua Barão de Capanema, em São Paulo, grandes volumes de estudos urbanos ocupam a parede em que estão expostos também os diplomas de premiação, em 2017, pela Associação Internacional para Instalações Esportivas e de Lazer (IAKS), dos projetos do Estádio Olímpico de Canoagem Slalom e da Arena da Juventude, desenvolvidos por Héctor Vigliecca e equipe para os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro de 2016.

Esses trabalhos são indicativos da produção dos quase últimos dez anos do arquiteto uruguaio que, recentemente naturalizado brasileiro, é um dos principais profissionais atuantes no Brasil.

Por ocasião da entrevista que fizemos há quase dez anos com Vigliecca (PROJETO edição 349, março 2009), o arquiteto estava já envolvido com o projeto da reforma do Estádio Plácido Aderaldo Castelo, o Castelão, em meio aos preparativos para a realização no Brasil da Copa do Mundo de 2014.

Um projeto de visibilidade e prestígio, bem como aqueles que desenvolveu posteriormente para as Olimpíadas de 2016, mas na mesma medida conturbado em termos de desenvolvimento e gestão.

Trabalhando na forma de consórcio e para um conjunto heterogêneo de clientes, o escritório de Vigliecca ganhou corpo naquele período, chegando a reunir 60 funcionários e a abrir filiais em outras cidades, mas a falta de linearidade no desenvolvimento, a lentidão dos pagamentos e o alto custo do conjunto de consultores especializados, muitos deles estrangeiros, acabou por dar o pontapé inicial na crise financeira que se seguiu no escritório, analisa o arquiteto.

Valendo, então, a máxima de que em tempos de crise se deve investir em inovação, Vigliecca resolveu aproveitar a expertise da equipe e participar de processos licitatórios para o desenvolvimento de grandes áreas urbanas, nas capitais paulista e baiana. Uma atividade complementar e mais complexa, ao menos em termos burocráticos, à sua prática recorrente de participar de concursos.

Na entrevista a seguir, realizada na companhia da sócia diretora do escritório, Neli Shimizu, Vigliecca fala sobre esses projetos especiais, mesclando o pessimismo frente à situação econômica e política atual do Brasil com a resiliência de quem segue tentando praticar arquitetura e urbanismo no país.

Por que o senhor se naturalizou brasileiro no ano passado, depois de tanto tempo morando no Brasil?

Héctor Vigliecca Fiz isso porque fui indicado para o Prêmio Oscar Niemeyer de Arquitetura Latino‑Americana, mas meu nome constava na relação dos arquitetos uruguaios. Não fazia sentido. Mas acho que não foi um bom momento para me tornar brasileiro.

Faz quase 10 anos que publicamos uma entrevista com o senhor. Qual foi a produção do escritório desde então?

HV Continuamos trabalhando muito, e eu gostaria até de ter menos trabalho. Mas estamos no meio de uma crise muito grande e, para tentar sair dela, participamos de tudo o que aparece. Licitações, concursos no Brasil e fora. Não fosse assim, teríamos mesmo é que fechar o escritório.

De quais concursos internacionais participaram recentemente?

HV Alguns são confidenciais ainda, mas teve um recente, na Rússia, que me deu bastante satisfação [expansão urbana de trecho da cidade de Kazan, capital da República de Tartaristão] ainda que o nosso projeto não tenha ficado entre os três finalistas. A área era muito interessante, parecia um bosque, e nós fomos convidados para participar por uma equipe russa de jovens arquitetos [Arch Slon]. Jovens mesmo, na faixa dos 25 anos. O trabalho fluiu bem, a linguagem do desenho deles é parecida com a nossa, as perspectivas dos projetos são quase universais. Mas são muito europeus no trabalho, não tem nada de particularmente russo na forma de eles projetarem.

Que diferenças culturais, arquitetônicas, o senhor percebeu nesse trabalho?

HV Difícil dar uma opinião sobre coincidências de pensamento através de um trabalho pontual e sobre um assunto concreto. Nós fazíamos proposições e eles reagiam a elas.

Mas nesses 10 anos foram construídos os projetos do seu escritório para centros esportivos da Copa do Mundo 2014 e da Olimpíada de 2016. Como analisa retrospectivamente essas experiências?

HV Posso dizer que a Olimpíada foi a experiência que desencadeou a crise financeira que atravessamos hoje. Por causa da demora no pagamento e da insistência [na fase da licitação] para nos associarmos a equipes estrangeiras com comprovada experiência no programa. Nos unimos a uma equipe portuguesa, que acabou subcontratando as engenharias lá em Portugal e, no fim, tivemos dificuldades com a prefeitura e com o COB [Comitê Olímpico Brasileiro], porque o trabalho era entregue fora do prazo e ilegível. Foi um desastre. Tivemos, então, que nos desligarmos deles, o que causou um problema enorme no consórcio como um todo. Perdemos dinheiro com essa dissolução. E, além disso, precisamos contratar uma série de consultores americanos, ingleses. Não bastasse isso, com a mudança do governo o pagamento foi entrando aos poucos, e nós fomos nos endividando. Tínhamos 60 arquitetos, todos contratados, e em certo momento precisamos demitir todo mundo. Custou uma fortuna. Nosso escritório do Rio de Janeiro, que era imenso, ficou com uma pessoa apenas.

O alto custo da equipe era por causa de exigências do Comitê Olímpico Internacional?

HV Óbvio que teríamos que ter consultores, em canoagem por exemplo, mas eles exigirem que participassem do consórcio empresas estrangeiras com tamanha experiência etc. era muito complicado.
Neli Shimizu Na realidade, chamamos essas pessoas para comporem o consórcio porque já não havia mais empresas brasileiras capazes de nos darem a pontuação necessária para nos qualificarmos na licitação. A opção local estava já participando de outro consórcio.

 

Eu sempre acho que os diagnósticos devem ser feitos depois que você estabelece a hipótese do projeto. Ele deve pertencer a uma realidade pretendida, trazendo elementos que justifiquem a hipótese do projeto.”

 

Vocês acompanharam a implantação posterior do plano urbanístico?

HV O plano urbanístico original, que inclusive foi o que nos deu a maior quantidade de pontos na licitação, era muito interessante. Mas, no final, não foi adiante. A área era de propriedade militar e quando eles [os militares] viram o estudo, rejeitaram de cara. Também tínhamos vários clientes, o que dificultava o processo. Eram os militares, o governo do estado e depois a prefeitura. Difícil saber a quem atender.

Com a crise, então, vocês ampliaram a prospecção de trabalhos dentro do escritório. Como se estruturaram para isso?

HV Depois de 40 anos de trabalho, começamos a receber convites, como aquele para o projeto na Rússia. Ficamos fora da final não pela proposta em si, mas pelo peso dos currículos dos outros concorrentes, da Holanda, Espanha etc, que têm volume de obras de habitação muito maior do que o nosso.

E em relação aos projetos para concessões urbanas?

HV Foi um momento excelente do escritório, com gente muito capacitada na parte urbana, em legislação, com advogados especialistas em direito urbanístico. Continuamos trabalhando com eles, mas são equipes latentes. Estamos esperando acontecer algo para colocar isso tudo de novo em funcionamento. O projeto que fizemos em Salvador [plano urbanístico para as áreas da península de Itapagipe, Centro Antigo e Orla Atlântica de Salvador] teve uma equipe extraordinária. Tudo incentivado e financiado pela empresa construtora, a Odebrecht [Properties]. Nunca havíamos tido um apoio técnico e financeiro tão grande, e os técnicos deles eram surpreendentes. Vibrante de fato. Esse desfecho da empresa surpreendeu todos, mesmo os coordenadores internos, pessoas de muita experiência e excelente capacidade profissional.

Que conclusão teve esse trabalho?

HV Absolutamente nada aconteceu. É uma pena, o país vai perdendo trabalhos sérios como esse. A prefeitura tinha solicitado a várias empresas que respondessem a uma Manifestação de Interesse para desenvolver espaços importantes da cidade. E nós trabalhamos com total liberdade, sem interferência nenhuma na condução do projeto. Fizemos o diagnóstico e propostas bastante concretas. Tivemos reuniões intermináveis com a prefeitura, montamos escritório lá em Salvador inclusive. Também em Florianópolis e Porto Alegre. No primeiro, ganhamos dois concursos importantes e toda semana me chamavam dizendo que iam fazer. Já em Porto Alegre, faz seis anos que ganhamos o concurso para a reforma e ampliação da Assembléia Legislativa. Eu já desisti de acompanhar o desenrolar dessa história.

Também no estudo para o Projeto Arco Tietê, da prefeitura paulistana, em 2013, vocês trabalharam associados com a Odebrecht, certo?

HV Não me fale dessas coisas, nada daquilo foi adiante. Outro trabalho que custou muito dinheiro e foi muito bem feito. Eu tinha me prometido não fazer mais concurso, mas quando começa a faltar projeto é isso o que fazemos. E licitação exige muita paciência. Se não fosse a Neli, eu não faria nenhuma.

Que trabalhos vocês têm na prancheta hoje? 

HV Ganhamos e perdemos concursos. Ficamos satisfeitos quando vemos que o primeiro lugar foi um projeto melhor do que o nosso, mas, atualmente, ganha sempre o mais do mesmo. Os primeiros prêmios têm sido a repetição de modelos ultrapassados. Faltam júris que posicionem o nosso trabalho. Temos ainda alguns concursos em andamento e licitações também. Mas não podemos falar sobre eles por enquanto.

Há alguma perspectiva de vir a ser implantado o projeto de vocês para o anexo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro?

NS A nova presidente abandonou o projeto.
HV
 Chegamos a fazer um livro para o diretor anterior, que seria utilizado para levantar verba. A obra estava orçada em 200 milhões, o que não é nada em comparação ao quanto gastaram para fazer os estádios da Copa. Seguramente, ele conseguiria esse dinheiro, mas mudou a gestão e o resultado foi zero.

E projetos de habitação de interesse social, como os relativos aos concursos Renova São Paulo e Morar Carioca?

NS O contrato segue em São Paulo, foram mudando várias diretrizes ao longo do tempo, inclusive as urbanísticas e as regras do Minha Casa, Minha Vida. Estamos já na terceira gestão da prefeitura desde o concurso.
HV Quando o projeto não tem confronto com a realidade a gente fica inseguro. Será que daria certo?

O senhor não leciona mais, embora esteja sempre envolvido com palestras em universidades. Qual a sua sensação sobre a qualidade do ensino de arquitetura no Brasil?

HV Não dá mais para lecionar na graduação por causa da carga horária que eles exigem. Mas tive uma boa surpresa em Recife, na Universidade Federal de Pernambuco, onde fui convidado [pelo arquiteto Enio Laprovitera da Motta] recentemente para acompanhar a apresentação de trabalhos de graduação. É bom ver um diagnóstico que classifique as coisas de maneira didática. Eu sempre acho que os diagnósticos devem ser feitos depois que você estabelece a hipótese do projeto. Ele deve pertencer a uma realidade pretendida, trazendo elementos que justifiquem a hipótese do projeto. Sem que se perca tanto tempo na análise, fazendo algo mais compacto e eficiente.

Qual a motivação para o senhor ter publicado uma série de livros recentemente? Um, em 2013, com a coletânea de projetos de concursos [Hipótese do Real] e o outro, em 2015, com o tema da habitação social [O Terceiro Território – Habitação Coletiva e Cidade]?

HV Tem mais um ou dois para serem feitos ainda: um sobre os grandes projetos, como Salvador e o Arco Tietê, e os concursos mais recentes, e o outro com croquis meus. Teria muita satisfação em publicar os meus desenhos. No livro sobre o Castelão, tivemos o financiamento do governo do Ceará, mas os outros dois pagamos do próprio bolso. Hoje, porém, não temos mais essa condição. Assim que entrar dinheiro, retomaremos esses projeto. Já que não conseguimos construir, tenho a necessidade de mostrar o que pensamos.

 

Texto de Evelise Grunow
Publicada originalmente em PROJETO
Edição 446

*O conteúdo do Acervo PROJETO está em constante atualização. Algumas matérias publicadas podem apresentar textos em desacordo com as regras ortográficas atuais, bem como imagens em menor resolução que o ideal, ou mesmo a falta delas. Ajude-nos a atualizar o site enviando mensagens aqui.